Prefácio
Kelly se presenteia, e a todos nós, leitores, com sua narrativa autobiográfica*, na qual a busca pelo sentido da vida, muitas vezes movida pelo encontro com a morte, dá à luz a escrita como integração e atualização de si mesma.
Enxergamos o desenvolvimento desse ser humano acontecendo a olhos nus – des-envolver no sentido de “tirar os envoltórios”. Esse movimento de travessia em direção ao centro de si inclui trazer à tona sua versão mais autêntica e percorrer todas as fases e lições desta jornada – deixando de lado o sofrimento de permanecer num lugar já apertado e cristalizado demais, criando a coragem de soltar o controle e sair da zona de conforto. Trata-se de encarar a própria vulnerabilidade, de notar a necessidade de flexibilidade e ter confiança no invisível, na reconexão com o coração, a intuição e o feminino. É um processo de largar, aos poucos, as referências externas e mudar a âncora para um ponto firme de apoio, agora dentro de si; ainda que, em princípio, seja preciso nadar contra a maré. Tudo isso significa curar-se de um estilo de vida mecânico e normatizante, ousando assumir aquilo que se é em essência: ousar Ser.
“Ouvi” a narrativa de uma travessia de retorno à essência, uma ampla viagem para longe que alcança o dentro e o perto, e que nos instiga a perceber a dádiva do tempo que temos todos os dias aqui na Terra. “Ouvi” o poder do foco e da determinação para construir sonhos e ideais a partir de uma rotina no dia a dia (a rotina é o altar do sonho!) sendo narrado por alguém que não perdeu a postura de aprendiz do desconhecido, que tentou novas rotas para redescobrir velhas habilidades, que compreendeu onde nasce o processo criativo de fato. Essa é a autenticidade de quem sabe onde está a fonte de sua nutrição, onde pulsa sua luz e seu calor – onde reside a inesgotável fonte de sua liberdade pessoal.
Kelly faz neste livro uma apologia delicada e respeitosa à mudança, sem menosprezar os estágios doloridos desse processo, localizando-o na realidade. Descreve com cuidado as habilidades necessárias para navegar em direção a essa mudança, para trafegar no desconhecido com a possibilidade de habitar um lugar nômade, mais livre e flexível, simples e inteiro, pois profundamente enraizado em si. Ela chega a um ponto de amadurecimento que também tem a potência de nos curar de nosso demasiado... desenraizamento.
Ela precisou habitar esse lugar de estrangeira para encontrar seu verdadeiro chão, e, o que em princípio parece ser desenraizamento se mostra, na verdade, busca e encontro com a verdadeira semente. De quebra, ainda se tornou mais próxima de seu querido avô.
Uma contadora de histórias, as suas próprias – e que, a seu modo, versam sobre inovar, empreender, amar e ser livre.
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*A biografia – escrita da vida –, do ponto de vista da Antroposofia, ciência espiritual trazida ao mundo pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner, é regida pelas leis invisíveis que nos norteiam. Uma dessas leis aborda a tarefa específica que temos para realizar nesta vida, a qual é o nosso propósito “oculto”, e que vai se desenrolando e se revelando conforme vamos dando à luz as várias partes desse humano em nós e vários capítulos de nossa história – nas chamadas fases da vida.
Esse fio de sentido que pulsa em nós e que não nos deixa descansar enquanto não o contemplamos é chamado de “fio vermelho”, ou leitmotiv (vide Bernard Lievegoed). Para enxergá- lo e realizá-lo, precisamos primeiro compreender, honrar e integrar nossas raízes transgeracionais e nossos aprendizados para, na presença ativa do nosso Eu superior, podermos, ultrapassados o limiar dos 35 anos, iniciar a caminhada da realização desse legado individual – fazer algo nosso com “o que fizeram de nós”, cuidando para sempre nos colocarmos no lugar de protagonistas dessa história, e não de vítimas.
Podemos, com a leitura ou a escuta de uma biografia, perceber o desvelamento desse fio de sentido e tentar compreender o para quê desta vida, qual é o movimento que ela tem, quais são seus capítulos, seus temas fundamentais, sua dinâmica própria, sua motivação fundamental, sua ânsia de realização!
Ao ler e habitar a atmosfera dessa narrativa, temos a chance de ver arquétipos de toda vida humana, e, ao mesmo tempo, enxergar que nenhum fio vermelho é igual ao outro – ele passa por pontos cruciais de nossa Humanidade, mas revela o Humano único em nós. Somos um e somos o Todo. Eis nosso mistério e nossa beleza.
Karina Schmidt Brancher
Aconselhadora Biográfica Antroposófica
Brasil, inverno de 2022.