Capítulo 8 - O recomeço não é do zero
Estava aprendendo a não precisar mais de rótulos, mas algo ainda não estava claro para mim. Uma vez sem essa identificação, o que faria com as habilidades que vim desenvolvendo ao longo da minha vida? Dava um certo frio na barriga pensar quais seriam suas utilidades. Teria de aprender tudo de novo? Essa sempre foi uma das preocupações quando pensava em uma possível mudança de carreira.
Mas a essa altura, eu tinha também uma certeza: minhas habilidades eram parte de quem eu me tornei como pessoa. Como se fossem a mochila de todo peregrino que vem caminhando pela vida.
E qual o tamanho dessa mochila?
Quanto mais andamos, vivenciamos e fazemos, mais ferramentas e habilidades acumulamos. Quantas vezes eu já não havia me pegado fazendo coisas somente pelo fato de ter facilidade em executá-las? No geral, sempre tive certa facilidade em desenvolver novas habilidades. No entanto, chega um momento em que essa mochila se torna pesada demais para continuarmos carregando-a. É hora de parar e avaliar o que temos ali para escolher exatamente o que queremos levar adiante conosco.
Decidi fazer uma lista com todas as habilidades que conseguia identificar em mim naquele momento. Eu precisava ter mais clareza do que estava falando para, aí sim, descobrir quais dessas habilidades eu gostaria de continuar colocando em prática. Ainda era apaixonada pela maior parte delas, mas não me sentia mais atraída a aplicá-las da forma que havia fazendo e no ambiente em que estava inserida até então. Eu precisava explorar novas formas e novos contextos nos quais minhas habilidades fossem úteis.
Esse foi o meu ponto de partida para começar a explorar novas possibilidades nas quais eu poderia fazer uso de meu conhecimento e minha experiência até então. Foi aí que surgiu o convite para integrar um projeto com uma organização que auxilia refugiados vindos de países como Irã, Iraque e Síria a se estabelecerem na Austrália. A iniciativa brilhou diante dos meus olhos desde o primeiro minuto. Quão maravilhoso seria ter a oportunidade de colocar minhas habilidades a serviço de uma causa tão nobre? Não pensei duas vezes antes de dizer sim a essa oportunidade.
Foi mais de um ano de intenso aprendizado para todos os envolvidos. Os aprendizes ali não eram apenas os jovens refugiados participantes: existia também uma organização aprendendo a melhor estruturar o projeto para seus parceiros, e eu, que estava a entender como poderia explorar tudo que trazia na minha mochila diante daquele contexto.
Nosso desafio era capacitar jovens refugiados para que eles pudessem estar aptos a encontrar um espaço no mercado de trabalho da Austrália. Encontrar seus talentos, desenvolver determinadas habilidades e encorajá-los a sair em busca de oportunidades era o cerne do nosso trabalho durante os meses nos quais eles participavam do programa. Estruturamos o treinamento utilizando o pequeno negócio social de velas aromatizadas da organização como plataforma prática de desenvolvimento desses jovens, proporcionando a eles a possibilidade de uma experiência real.
Como sempre digo, a beleza de trabalhar com educação é: quando nos dispomos a ensinar o outro, mais aprendemos. Isso ficou claro para mim já durante os encontros do primeiro grupo. Tive uma aula de culturas, tradições, mindset e valores completamente diferentes dos meus.
Toda vez que sentávamos para um intervalo durante as atividades, eu parava atenciosamente para ouvir as histórias de cada um e me impressionava demais com uma realidade completamente diferente da minha – bombas, execuções, assassinatos e destruição eram palavras que não faziam parte da minha vida, a não ser pelos museus que visitei em minhas viagens.
A maioria dos participantes deixou para trás muito mais do que uma casa e pertences materiais; o que tinha ficado lá era parte de suas raízes e tradições, como se um cordão umbilical tivesse sido rompido. Isso acabou por se tornar memórias; por vezes, positivas, por outras, nem tanto, mas com certeza inesquecíveis.
Enquanto ouvia tudo aquilo, eu comparava o motivo da ida deles para um novo país com o dos imigrantes. Ao contrário desses últimos, os primeiros não chegaram à Austrália atraídos pela beleza natural ou qualidade de vida. Eles não tiveram escolha. Ficar em sua terra natal não era uma opção.
Muitos traziam em suas mochilas anos de estudo e diplomas que infelizmente não tinham valor algum no novo território, pois não eram reconhecidos pelos padrões educacionais da Austrália; mas algo que ninguém podia tirar daqueles jovens eram os talentos e as habilidades que carregavam consigo. Foi assim que encontramos uma abertura no projeto para fazer com que eles se engajassem mais profundamente com a oportunidade e encontrassem força e vontade para recomeçar.
O objetivo principal do programa em si era o desenvolvimento profissional daqueles jovens. No entanto, desde o primeiro grupo ficou claro para todos que nosso trabalho ia muito além daquilo. Era sobre reconhecerem seus valores, encontrarem-se no diferente, conquistarem sua autoconfiança e não terem medo de “colocar a cara para fora”.
Ouvindo os participantes após o projeto, foi nítido ver a forma como ingressaram e como deixaram a iniciativa totalmente transformados. Era impossível não sentir tristeza pelas histórias daqueles jovens, mas me inundava um sentimento de gratidão profunda ao ver os sorrisos em suas carinhas ao descobrirem seus potenciais.
Quando aceitei fazer parte do programa, buscava entender como explorar minhas habilidades de outras formas e acabei recebendo muito mais do que isso. Ganhei a possibilidade de compartilhar o meu estágio de recomeço com mais pessoas em momentos similares ao meu.
Em um momento, eu me peguei pensando no medo que tinha de recomeçar minha carreira. Ao olhar aquelas pessoas recomeçando praticamente suas vidas, eu me senti pequena no meio de gigantes. Elas me mostraram que ninguém é capaz de tirar de nós o que somos e quem nos tornamos, e por mais que tenhamos de recomeçar, sempre o faremos de um lugar à frente de onde estávamos. Mas, algumas vezes na vida, precisamos aceitar os ciclos que se encerram e olhar para a frente.