Capítulo 5 - O desapego do que se foi
Quanto mais tempo se faz algo e mais esforço se coloca, mais difícil fica se desapegar daquilo. E isso vale para tudo: o que fazemos, onde vivemos, como nos movemos, o que consumimos, quem somos a cada dia. Foram mais de 15 anos estudando e trabalhando para construir uma carreira e, em determinado ponto, eu me sentia despedaçada ao olhar para aquilo e ver que aquela camisa pela qual tanto suei já não me servia mais.
Quando tomei a decisão de não voltar ao Brasil, em primeiro lugar ouvia o desejo latente em mim de viver algo novo em um lugar completamente diferente, rodeado de pessoas distintas. Mudar o contexto no qual estava inserida era uma peça importante nesse processo, mas estar bem longe de minha realidade anterior era também uma forma de tentar evitar qualquer tentação de querer voltar ao velho caminho.
Nenhuma decisão de andar pelo desconhecido é fácil, porém não há transformação e evolução em zona de conforto. Nossa tendência sempre será ficar no que se sabe e andar por onde se conhece, pois essa situação nos traz tranquilidade. No entanto, também é fato que ninguém cresce, aprende e se reinventa em um lugar calmo e quentinho.
A mudança é um caminho estreito cuja travessia nos desafia a nos movimentar e pensar de uma outra forma. Ela nos impulsiona a bater no peito e defender o que desejamos. É preciso acreditar em nós mesmos e dar o próximo passo mesmo com aquele medo quase nos travando por dentro.
Era justamente esse o sentimento que reinava naquele momento dentro de mim. Parte de mim sabia que eu estava seguindo meu coração e ouvindo um desejo postergado há vários anos, porém uma outra parte me segurava. Era como se algo bloqueasse minha passagem e embaçasse minha visão. Não conseguia enxergar o caminho à minha frente e isso era assustador.
Eu me peguei noites seguidas sem conseguir dormir, perguntando a mim mesma se estava fazendo a coisa certa. Meu lado racional brigava por espaço, questionando: não seria muito mais fácil voltar para meu apartamento, minha rotina, meu emprego e fazer mais do mesmo? Será que precisava mesmo de uma mudança como essa? Quem sabe mudar apenas de ambiente, buscando um cargo em uma nova empresa, já não seria o suficiente? É aquela falsa sensação de conforto que o que é familiar nos traz, e não tem como evitar. Na ânsia de chegar a uma resposta, eu me rendi.
Pouco tempo depois estava, mesmo a quilômetros de distância, envolvida em três processos de recrutamento diferentes para posições em multinacionais. Acordava no meio da madrugada para participar das entrevistas e videochamadas com pessoas no Brasil. Foi quase um mês e meio nessa dinâmica, até que recebi a mensagem de uma das empresas comunicando que eu era uma das finalistas de um dos processos de seleção.
Aquilo me atingiu como uma flecha. No mesmo momento, congelei. Minha mente só processava uma imagem: a minha entrada no escritório da empresa com um novo crachá nas mãos. Mas, não era exatamente aquilo que eu queria? Por que então o sentimento de repulsa?
É esse tipo de choque que experienciamos quando estamos confrontando nossas crenças. Quando batemos de frente com coisas em que não acreditamos por nós mesmos, mas sim que um dia nos fizeram acreditar. Era minha mente racional insistindo que uma carreira no mundo corporativo era minha melhor solução para o dilema que estava enfrentando.
Quantas vezes você se viu nessa mesma situação de perseguir e até mesmo atingir algo sem sentir aquela sensação de alívio e satisfação? Cuidado! Esse pode ser um forte sinal de que você está seguindo soluções e respostas prontas apresentadas a você e não elaboradas por você mesmo.
Com a confusão ali instalada, naquele momento entendi que aquele não era mais o meu caminho. Era meu coração dizendo não àquele possível retorno. Dei tempo para que meus sentimentos se assentassem e se tornassem mais claros, e, um pouco mais segura, contatei o gestor do processo em questão.
Ele, com certeza, esperava minha expressão de felicidade por ter sido selecionada entre as finalistas; eu aguardava a mesma reação que ouvi de várias pessoas que me contataram nesse meio-tempo, tentando entender o que estava acontecendo comigo e se eu ainda tinha um nível saudável de sanidade. Provavelmente, seria mais um me falando que “estava louca”.
Por várias vezes, falei o que não ressoava comigo apenas para agradar os outros. Felizmente, eu não conseguia dizer mais o que já não era verdade para mim. Comecei a ligação agradecendo a consideração para a vaga e a ótima oportunidade que o trabalho representaria para uma carreira como a minha, mas declinei a oferta, pois esse profissional não se encontrava mais em mim.
Tínhamos criado uma proximidade durante o processo e me senti à vontade para contar a ele brevemente o momento pelo qual estava passando, a mudança que buscava e também as inúmeras dúvidas que ainda pairavam em meus pensamentos. Terminei agradecendo a clareza que fazer parte daquele processo havia me trazido: aquilo definitivamente não era mais para mim. O silêncio imperou de ambos os lados por alguns segundos. Ele, talvez, tentando me compreender, e eu digerindo o que eu mesma havia dito. Mas, instantes depois, sua voz do outro lado da linha ressurgiu de uma forma que realmente não podia esperar. Ele me agradecia pelo que tinha acabado de ouvir e me dava os parabéns por ter tido a coragem de tomar a decisão que ele há tempos não conseguia ter. Aquilo me iluminou a alma. Um sorriso resplandeceu em meu rosto. Se eu buscava sinais de que estava no caminho certo, havia recebido um naquele momento.
Durante muito tempo, achei que meu grande desafio seria me desapegar de estar próxima da minha família e dos meus amigos, pelo fato de ser tão ligada a todos eles. Nunca poderia imaginar que meu primeiro e maior obstáculo seria o desapego da minha carreira. Mas, por que isso?
Eu venho de uma geração e uma família na qual fui ensinada a ter o trabalho como prioridade número zero em minha vida. Fui ensinada a acreditar que o trabalho é o que nos dignifica como pessoa. Ouvi desde muito cedo a frase: “Sem trabalho não somos ninguém”. Mas, não era sobre qualquer trabalho que estavam falando, e, em pouco tempo, a frase se transformou em: “Sem um bom trabalho você não será ninguém”.
A sociedade me apresentava uma caixa de bons trabalhos: médica, advogada, administradora, dentista, bancária, contadora, servidora pública etc. Mesmo não entendendo por que muita coisa ali não estava incluída, acabei escolhendo um rótulo que estava fora daquela seleção: publicitária. Porém, desde muito cedo não foi exatamente essa a atividade profissional que desempenhei. Iniciei em Comunicação, fui para o Marketing e fiz uma transição de carreira para Inovação e Empreendedorismo.
Qual, então, seria o meu rótulo?
Adoraria me intitular criadora, inovadora ou empreendedora – talvez porque ressoa mais comigo – mas esses não eram rótulos disponíveis àquela altura e tive de me enquadrar no velho e conhecido marqueteira. Durante muito tempo, foi assim que me intitulei e como me apresentei em situações cotidianas ao ser questionada sobre quem era. Sem nem mesmo pensar, a profissão era a primeira resposta na ponta da língua. De tanto isso ser reforçado, somos levados a crer que realmente somos o que fazemos. Ou ainda pior: temos o cargo como nome e carregamos o nome da empresa como nosso sobrenome.
Até o dia em que tive esse título removido por minhas escolhas. Fui forçada a repensar de fato quem eu era e como me definia, já não carregando mais determinado crachá. Uma gerente de Marketing que saía do palco e dava espaço para a entrada de uma nova persona em cena... Mas quem seria ela?
"Quando batemos de frente com coisas em que não acreditamos por nós mesmos, mas sim que um dia nos fizeram acreditar" AMEI
Me identifiquei muito com esse capitulo, há quase 3 anos tomei a decisao de sair de uma clinica conceituada (socialmente) aqui em Pira, tinha uma posição importante. No fim só me gerou estafa e 2 anos de terapia, rss! Era a oportunidade que todo fisio queria, eu escutava isso da chefe, que foi muito abusiva. Sai de lá achando que podia nao dar certo, mas super deu. Sou diferenciada no meu trabalho, e isso é feito de forma consciente, do nao querer ser comum.
Você nem imagina como sua história fala com meu coração nesse momento. Gratidão por pensar em mim para compartilhar essa experiência