Capítulo 4 - A perda transforma
Foi após uma sessão com um terapeuta que me acompanhava naquele momento que a gaiola na qual eu estava começava a querer abrir.
Encontrei-me com uma grande amiga em um dos bares da cidade. Nossas conversas sempre foram regadas a inspiração e uma taça de vinho. No meio de mais um dos nossos papos reflexivos, ela abriu um sorriso e me fez uma pergunta que vira e mexe ouvimos por aí sempre acompanhada de um tom de ironia:
— Se você pudesse fazer o que quisesse agora, o que faria?
— Eu iria para a Austrália, pois esse é o sonho que por duas vezes já deixei para trás — respondi, como se fosse brincadeira, acompanhada de uma gargalhada.
Essa descrença já diz muito sobre a forma com a qual tratamos nossos sonhos. Acabamos por colocá-los em um lugar tão difícil e inatingível que isso torna quase surreal a possibilidade de eles acontecerem em nossas vidas. Mas, diferentemente das situações anteriores, nas quais os outros acabavam rindo comigo, ela me surpreendeu:
— Onde está seu celular? Vamos buscar uma passagem agora!
— Está louca? — respondi, com uma resistência natural.
Não conseguia me imaginar entrando em um avião naquele momento, muito menos embarcando rumo ao meu sonho, mas ela acabou me convencendo com seu jeitinho conquistador. O empurrão final veio com a promoção de passagens, que encontrei pela metade do preço. Não tive como evitar.
Apesar da cara de susto do meu gestor, e, claro, graças a sua compreensão, mais ou menos um mês depois eu estava embarcando para a Austrália. Meu plano inicial era um mês de férias, no qual passaria algumas semanas em Sydney, outras viajando pela costa até a região de Queensland e, por último, uma visita rápida a Melbourne, onde pegaria meu voo de volta ao Brasil.
Tudo começou como planejado e caminhou como tal até certo ponto. Uma amizade com um australiano que conheci em um mochilão pela Argentina há quase dez anos, e a quem prometi visitar, abriu-me as portas da forma mais hospitaleira possível. Conheci cada canto de Sydney, os turísticos e os nativos – que são sempre os melhores para quem realmente quer entender a cultura local. Era uma cidade jovem, com a modernidade de um centro urbano, mas ao mesmo tempo rodeada pela beleza natural típica da Austrália.
O equilíbrio entre o cosmopolita e o selvagem, o industrial e o natural, o agito e o silêncio. Desde o início, isso foi o que mais me chamou a atenção em Sydney, onde conseguia reconhecer um pouco do meu passado e do presente. Encontrava lá algo do qual queria me libertar e um pouco do que queria acender em minha vida.
Após 15 dias em Sydney, peguei um voo para Queensland, seguindo meu roteiro inicial; era um estado mais ao norte da Austrália. Ali, conheci a fundo a costa australiana e suas famosas praias, todas com uma exuberância natural de prender os olhos de qualquer um. Uma delas, com certeza, captou não somente minha atenção, mas meu coração.
No momento em que pisei em Byron Bay, pude sentir a energia forte do lugar. Eu me lembro como se fosse hoje do sentimento ao andar por aquela praia. A cada pegada na areia, via memórias ressurgirem em minha mente, e pareciam tão vivas. Aquele lugar me fez voltar aos momentos mais felizes da minha infância e adolescência. Uma praia no litoral sul de São Paulo, onde praticamente fui criada desde pequena; por isso, minha conexão tão forte com a natureza. Eu tive pela primeira vez a sensação de estar em meu lar, apesar de tão longe de casa. Sentia que a Austrália era, para mim, mais do que um lugar de passeio.
Foi em meio a essa energia que encontrei ali também meu primeiro crush australiano. Uma pessoa completamente diferente de mim, mas exatamente aquilo que precisava experienciar naquele momento: o avesso.
Voltei para Sydney me questionando sobre as escolhas que andava fazendo em minha vida. Aquilo poderia ser apenas um encontro, mas vim a entender, tempos depois, por que ele havia cruzado meu caminho. Se eu procurava respostas sobre uma nova forma de me sentir viva, ele estava ali para me dizer que existiam outros jeitos de viver.
A uma semana de pegar o meu voo de volta para o Brasil, meus planos haviam mudado e eu ainda estava em Sydney. O planejado inicialmente seria Melbourne como última parada antes do meu voo de retorno, mas algo maior me segurava ali onde eu estava. Até resisti à mudança, com algumas tentativas de compra da passagem para Melbourne, mas acabei deixando minha razão de lado e desisti. Apenas respeitei minha vontade de ficar, aproveitar aquele momento e explorar os últimos dias que restavam de minha viagem por ali mesmo. Minha conexão com a Austrália foi tão grande que comecei a investigar possibilidades de futuramente voltar e ficar por um período mais longo no país.
Então, um dia antes do meu voo de volta ao Brasil, saí de casa carregando na mochila meu passaporte – coisa que nunca fiz em todos os lugares pelo qual viajei – para a reunião que teria com um advogado de imigração e estudos no exterior. Parei em um café e tirei meu laptop para escrever, como de rotina.
Fui para casa e, após um jantar de despedida, comecei a arrumar minhas malas. Entre os últimos preparativos, sempre separo e confiro meus documentos para embarcar. Fui pegar meu passaporte na bolsa para fazer a compra do voo para Melbourne no dia seguinte e o susto veio: meu passaporte não estava lá!
Em meio ao nervosismo, liguei para a polícia e relatei o ocorrido. A recomendação era aguardar até o dia seguinte e me dirigir ao Consulado. Praticamente não fechei os olhos durante a noite toda. No primeiro raiar do Sol, estava saindo de casa a caminho do Consulado para resolver a situação, enquanto acessava o aplicativo em meu celular para compra do voo para Melbourne. A minha sorte era que o trecho Sydney-Melbourne é como São Paulo-Rio de Janeiro, portanto opções de voos eram o que não faltava. Eu corria contra o relógio, pois precisava estar em Melbourne até o fim do dia para embarcar de volta ao Brasil.
Era uma das primeiras na fila de atendimento do Consulado. Enquanto aguardava ser chamada, um pensamento relâmpago me passou pela mente. Pedi ao meu amigo australiano que me acompanhava que se dirigisse até o café onde havia estado no dia anterior simplesmente para conferir se não tinham encontrado nada por lá.
Foi uma fração de segundo entre o momento em que sentei na cadeira para explicar minha situação ao atendente do Consulado e o meu telefone tocar. Um dos funcionários do café havia encontrado meu passaporte. Um respiro de alívio tomou conta de mim enquanto eu pegava o elevador do prédio no qual me encontrava, mas durou pouco. Já no térreo, enquanto abraçava meu amigo com meu passaporte em mãos, abri novamente meu celular para a compra do bilhete para o trecho interno. Para minha surpresa, o único voo disponível era por volta de dez horas da noite. Todas as outras opções haviam sido canceladas.
Liguei imediatamente para minha agência de viagens no Brasil procurando uma orientação. Peguei minhas malas e fui direto ao aeroporto na expectativa de que seria apenas um erro de sistema, mas o balde de água fria veio ao chegar no saguão e me deparar com o caos à minha frente. Por conta do mau tempo, 70% dos voos tinham sido cancelados.
Foram mais de duas horas no aeroporto. Inúmeras tentativas com as operadoras locais e companhias internacionais para que eu pudesse embarcar de volta ao meu destino. Não tinha nada a ser feito.
Em meio àquela confusão, encontrei um canto no saguão do aeroporto, encostei minhas malas e, ali, desabei. Peguei meu celular e, com as lágrimas correndo, liguei para meus pais, pois eles planejavam me encontrar no aeroporto de São Paulo.
Enquanto meu pai tentava buscar uma solução rápida, como a compra de uma nova passagem, o conforto naquele momento veio por meio das palavras de minha mãe, confirmando que toda mãe conhece muito bem sua cria. Ao notar meu estado, ela sabia que o voo não era o motivo principal de meu desespero. Ela enxergou que existia uma tensão muito maior ali por trás da situação e, com uma voz aveludada, disse:
— Filha, você parece estar perdida.
— Sim, mãe — respondi, em meio a soluços.
— Então, não faça nada. Dê-se um tempo e reflita o que você quer de fato antes de tomar qualquer decisão.
Ouvi, simplesmente agradeci e deixei o aeroporto carregando as malas, que pareciam pesadas, mas uma sensação de alívio surgia em mim e me fazia respirar.
A semana foi de stress e ansiedade. Tanto barulho e confusão dentro de mim que era quase impossível me silenciar, muito menos achar qualquer resposta. Eu me via em frente a um grande dilema: voltar ao Brasil e perseguir o que havia construído até então ou começar um novo capítulo em minha vida?
Era exatamente a dinâmica de um processo de mudança o que vivia naquele momento: tudo começa quando somos apresentados a dilemas nos quais precisamos nos posicionar e tomar decisões. É como se a vida perguntasse:
E aí, você escolhe permanecer ou sair desse lugar?
O fato é que não há mudança que aconteça na calmaria. Stress, ansiedade, insegurança são inerentes ao processo de trafegar pelo desconhecido. Com o tempo, o que podemos é desenvolver habilidades para navegar melhor por essas mudanças, mas o cenário à nossa frente sempre será nebuloso.
No meio daquele cenário cinzento, recebi a mensagem de uma amiga que havia conhecido em um dos treinamentos de autoconhecimento de que participei ainda no Brasil. Apesar de termos nos falado poucas vezes, sabíamos do significado especial do nosso encontro. Sua mensagem me trazia um convite não muito usual. Era um convite para sonhar! Aquilo ressoou como música em meus ouvidos. Em meio ao caos, consegui ver uma luz, ainda fraca e tímida, mas que me inspirava a caminhar em sua direção. Era exatamente do que precisava naquele momento: voltar a acreditar nos meus sonhos.
Então, resolvi, ainda sem clareza alguma, embarcar nessa jornada e abrir um novo capítulo na história da minha vida. Peguei o telefone e comuniquei à minha família e ao meu chefe a decisão de não retornar ao Brasil.
Ah, a água... quão poderosa ela é.
E quanta sensibilidade da sua mãe!! Em momentos como esse todo apoio é fundamental. Feliz de ver você feliz e saber que Universo nos cuida tão bem