Capítulo 1 - Encarar a morte me aproximou da vida
Desde pequenos, ouvimos falar sobre a preciosidade da vida, mas pouco nos damos conta do que isso realmente significa. Mais jovem, lembro quando olhava para os meus bisavós e avós e conseguia enxergar literalmente essa preciosidade.
Estava claro para mim que não temos como escapar de certos estágios da vida. Mas o que me chamava a atenção nessas pessoas nunca foi a idade em si. O que sempre despertou minha curiosidade era saber suas histórias – o que e como viveram, o que fizeram, o que aprenderam etc.
Talvez porque eu tenha tido a sorte de ter avós com muitas histórias para contar. Até os dias de hoje, é comum a cena da nossa família reunida em volta do meu avô, ouvindo-o atenciosamente enquanto ele conta seus inusitados episódios de vida. Não tem como não reparar em suas expressões e sua empolgação enquanto se lembra dos fatos e narra os detalhes. É nítida a vivacidade que se acende em seu rosto. Isso sempre me inspirou de tal forma que prometi para mim mesma, desde cedo, que eu também seria assim – uma pessoa com muitas histórias para contar, pois isso, sim, era sinônimo de uma vida bem vivida para mim.
De tanto ouvir minha mãe me dizendo: “Isso mesmo, aproveite a vida!”, meu lema desde a juventude acabou se tornando esse. Tanto que minha primeira tatuagem – todas que tenho significam algo único e especial – foi a frase em latim Carpe diem, que significa “Aproveite o dia”; foi escolhida quando assisti a Sociedade dos Poetas Mortos, um filme que me marcou profundamente. Desde aquele instante, ficou gravado em mim que o que importa é aproveitar cada minuto de nossas vidas.
Mas, um pouco mais velha, quando me vi no meio de um furacão, fazendo tudo que era possível e mais um pouco, aquele questionamento voltou a me rodear. Seria essa a tal preciosidade da vida? Antes, um segundo parado era desperdício. Agora, esse mesmo segundo havia se tornado tão raro que mal o via passar.
Será que entendemos realmente esse valor? Porque, se sim, eu e você pensaríamos duas vezes antes de comercializar nossas vidas a qualquer preço. Nós nos pegamos frequentemente falando para o outro o quão precioso é o nosso tempo; mas, quantas vezes acabamos trocando esses valiosos minutos por um salário mais alto, um carro mais novo, uma casa maior, um computador mais rápido ou um celular mais moderno?
Qual é o real valor dessa moeda de troca? Nós acabamos por estabelecê-lo sem, muitas vezes, termos consciência disso. E talvez ele não seja um valor tão exato assim. Basta conversar com um jovem, um idoso ou um portador de doença terminal para entender essa relatividade. no palco da vida.
Segundo o famoso ditado: “Nós apenas reconhecemos o valor de determinadas coisas quando as perdemos, ou ao menos sentimos que as estamos perdendo”. Então, será que chegar a esse limite poderia ser o caminho para a resposta? Bem, para mim não foi tão simples assim...
O susto ainda antes do primeiro respiro
Foi no outono do ano de 1982. O cenário era a Praia de Tabatinga, litoral de São Paulo. Minha mãe, grávida de 8 meses, viajava a passeio com meu pai e seus amigos. O que parecia apenas uma diversão se tornou o episódio mais traumático da vida dela e do início da minha. Eu era ainda um bebê dentro de sua barriga.
Uma cãibra na perna a paralisou enquanto ela tomava um banho de mar. A tentativa de pedir ajuda aos amigos que estavam na areia não surtiu efeito. Mamãe, naquela época, tinha fama de ser brincalhona entre a turma, o que fez com que ninguém levasse a sério a sua mensagem de que estava em apuros. Aí, o desespero bateu, como ocorreria com qualquer mãe ao sentir que colocava a vida de seu filho, ainda em seu ventre, em risco.
Ela não conseguia enxergar nada além da imensidão de água à sua volta. Apenas gritava e pedia por socorro, tentando atrair a atenção de quem estivesse por perto.
Por sorte dela, mas também porque era meu destino vir ao mundo, um pescador apareceu com seu barco, como um anjo, para nos salvar.
O choque na inocência da infância
Minha infância foi uma fase marcada pela presença de família e amigos. Eu estava sempre rodeada de muitas pessoas. As lembranças que mais tenho desse período são as brincadeiras diárias de rua com os vizinhos e os fins de semana na chácara ou no sítio da família com os meus primos.
Mas, talvez, a memória mais viva em mim eu encontre ao olhar para a palma da minha mão esquerda. Uma cicatriz que não me deixa esquecer o acidente que marcou minha infância. Cada vez que olho para ela, eu me transporto para a última imagem daquele momento gravada em minha memória: minha avó desesperadamente me puxando com um pano enrolado em suas mãos, tentando me libertar de uma corrente elétrica de altíssima voltagem à qual fiquei presa.
Apesar do fim de semana no sítio da família ter começado como qualquer outro, definitivamente não acabou como de costume. O que parecia uma inofensiva brincadeira de mangueira de água com os primos resultou em um belo escorregão que, por consequência, levou-me a agarrar a primeira coisa que vi em minha frente – um fio de energia desencapado que passava por cima de um poço de água, muito comum naquela época.
O bombeiro foi acionado, mas não conseguiria chegar a tempo. Daquela vez, o meu anjo veio na forma de uma prima da minha mãe, que conseguiu desligar a energia segundos antes de eu não sobreviver a tamanha descarga elétrica.
Eu não consigo me lembrar de como me libertaram daquilo, por mais que tente. Talvez porque tenha ficado em estado inconsciente pela intensidade do choque. Quando recuperei os sentidos, estava em um banho de água morna e nos braços de minha mãe, que, ao me olhar, soluçava entre lágrimas.
O freio nos limites da juventude
Avanço alguns bons anos para a frente. Meu primeiro namoro e a primeira viagem com o namorado desde o início de nosso relacionamento. Decidimos ir para Ubatuba e passar o Carnaval com o irmão dele e uma turma de amigos. A parte mais difícil para mim, até ali, era pedir a liberação de meus pais para nossa primeira viagem sozinhos. Eu mal sabia que isso seria “fichinha” perto do que estava por acontecer.
Como todo Carnaval, foi um feriado regado a música, dança, risadas, alegria, diversão e... Poderia ter parado por aí. Mas, naquela época, a combinação de álcool com o volante não parecia ser uma grande preocupação para muitos da minha idade.
Na madrugada do domingo, a folia colorida foi substituída por um blackout de sofrimento. Estávamos dentro do carro aguardando para cruzar uma estrada de mão dupla e, no momento seguinte, nosso carro foi acertado por outro veículo. Nessa fração de segundo, o que vi ali foi só uma intensa luz vindo do lado de fora da janela do carro em nossa direção. Quando fecho os olhos, ainda consigo ouvir meu grito e sentir a intensidade da brusca batida em meu corpo.
Pessoas nos cercavam enquanto pediam por ajuda. Passamos a madrugada no hospital sendo examinados. O olhar desesperado de meu namorado e a apreensão do casal de amigos que nos acompanhou só aliviou quando, após o atendimento e todos os exames, tivemos a certeza de que nossa dor era apenas física.
Nossos anjos naquele momento atuaram em dose dupla. Escapamos dessa com dores imensas e ferimentos grandes, mas infinitamente menores do que o alívio que tivemos ao saber que o nosso carro tinha batido contra um caminhão.
O sequestro e a impotência do ser humano
O próximo episódio aconteceu logo após eu ter conquistado meu tão almejado movimento de carreira para a capital. Quem nasceu no interior sabe o quanto isso representa. Recém-instalada em São Paulo, eu era só felicidade pela conquista, mas foram poucos meses entre o passo de expansão e o suspiro apreensivo de privação.
Em um sábado de sol, eu e uma das minhas melhores amigas dirigíamos a caminho do Brooklin, um bairro de São Paulo; ela, no volante, e eu, no controle do som e da playlist para animar o fim de semana. O plano era encontrarmos uma amiga em comum que estava de passagem pela capital.
Ao pararmos o carro em frente ao prédio, dois homens armados surgiram na esquina da rua na qual estávamos e se movimentaram apressadamente em nossa direção. Fomos abordadas e não tivemos tempo para pensar, correr e muito menos reagir.
O sequestro relâmpago infelizmente não foi tão “relâmpago” assim para nós. O plano deles estava arquitetado e cronometrado: nos abordar, tomar nossos cartões, dirigir até ao caixa eletrônico mais próximo e sacar o máximo possível do nosso dinheiro.
O que não estava nos planos era um dos vizinhos do prédio assistindo a tudo da janela de seu apartamento. Enquanto deixávamos o local com os assaltantes, com a ajuda dele, minha amiga, ainda em choque, ligou para nossos pais, que, em contato com o seguro, acionaram o rastreamento imediato do carro.
Após alguns minutos, paramos em um posto próximo à Marginal Pinheiros. Os dois sequestradores que estavam conosco deixaram o carro, tomando nossos cartões e tudo o mais que tínhamos de valor para que outros dois assumissem o mesmo posto.
Minha amiga estava sentada no banco do passageiro, à frente, com um dos sequestradores no volante; e eu, no banco de trás, com o outro sequestrador e sua arma apontada para minha barriga. Não sei precisar quanto tempo exatamente ficamos com eles, mas essa cena, com certeza, tornou-se a mais longa e tortuosa de nossas vidas.
Entre ameaças de morte, histórias de esquartejamento e risadas sarcásticas, seus olhos atentos e apreensivos se voltaram para um carro da polícia que repentinamente se aproximava. Em segundos, a perseguição estava iniciada. Enquanto a polícia acelerava e sinalizava com farol alto para que eles parassem o carro, o sequestrador ao volante tentava ter controle da situação. O bandido que estava comigo no banco de trás transpirava desesperadamente. As únicas palavras dele das quais consigo me lembrar são: “Eu vou atirar para matar”. Nunca tinha visto alguém tão perto apontando uma arma; ter uma apontada em minha direção, então, era algo inimaginável até aquele momento. Eu me transportei mentalmente dali para as cenas do filme da minha vida. Vi o rosto de meus pais, do meu irmão e de meus avós em meio a momentos que tivemos juntos. Pareciam tão reais que, por um segundo, cheguei a acreditar que tudo aquilo era um sonho, mas a discussão entre os dois sequestradores me trouxe de volta ao momento presente. Quando me dei conta, estávamos literalmente atravessando a Marginal Pinheiros a 90 graus e adentrando um dos bairros em uma tentativa bem-sucedida de despistar a polícia. Foram segundos até que eles parassem o carro e ambos saíssem em fuga.
Sem processar ainda muito bem o que havia acabado de acontecer, eu e minha amiga, trêmulas, tentávamos ligar o carro e sair dali. Não tínhamos ideia de onde estávamos ou de para onde ir, simplesmente começamos a dirigir. De repente, fomos obrigadas a parar por conta do trânsito; o tráfego era rumo ao acesso do estacionamento do Shopping Morumbi, um dos maiores de São Paulo.
Quando apontamos o carro na entrada do estacionamento policiais começaram a surgir por todos os lados. Eu mal conseguia abrir o vidro, muito menos descer do carro. Minhas pernas tremiam e não havia jeito de encontrar sustentação. Foram os policiais que me ajudaram a sair dali.
Já sentada no chão, do lado de fora do carro, o choro, até então reprimido pelos bandidos, aflorou. Eu só precisava de calor humano para me sentir segura novamente, e ele veio no abraço da minha amiga e do vizinho, os anjos que nos salvaram dessa vez.
O respiro de uma nova vida
Termino essa série de acontecimentos deslizando uns dez anos para a frente. Era setembro de 2017 e eu estava em um momento bem estressante da minha carreira. Decidi, de última hora, fazer minhas malas e passar uma semana na casa de praia da família em Juquehy, litoral norte de São Paulo, buscando escapar um pouco daquele caos.
Apesar da prazerosa companhia de meus pais e avós, o tempo não ajudou muito, e passamos o fim de semana debaixo de chuva. Entre um jogo de cartas e um café da tarde coado pelo vovô, eu resolvi abrir meu computador para checar coisas aleatórias. Foi quando um e-mail de promoções de voos pingou em minha caixa de e-mails.
Bem, esse seria mais um entre aqueles tantos outros e-mails que mandamos para a Lixeira. Só que, daquela vez, o universo foi pontual. Quando percebi, já estava com três sites de companhias áereas abertos e me perguntando qual o próximo lugar que gostaria de visitar. A minha mente geminiana começou a navegar nas opções, mas o coração logo respondeu sim ao se deparar com uma oferta especial para Jericoacoara, Ceará, no nordeste do Brasil.
Entre a compra da passagem, a mala arrumada e a carona de meus pais até o aeroporto foram menos de 24 horas. Ali estava eu, embarcando para um dos meus desejados destinos em território brasileiro. Mais uma vez aquela sensação gostosa de ser surpreendida por planos não feitos me tomava.
Já no aeroporto, uma pausa rápida na livraria antes do embarque. Adoro ler e sonho com o dia em que poderei acomodar os meus livros físicos em uma pequena caixinha para levar comigo por onde for – sim, eu sou daquelas que ainda não se renderam completamente ao digital quando se trata de livros. Enquanto não consigo isso, o hábito de comprar um novo livro continua como um ritual de viagem.
A escolha do livro é sempre guiada pela intenção da viagem naquele exato momento da minha vida. Aproveito essas oportunidades de descompressão da rotina para simplesmente me abrir e aliviar a alma. Naquele momento em particular, estava em busca de algo mais e que ainda não conseguia definir bem o que era. O livro Por que fazemos o que fazemos?, de Mario Sergio Cortella, praticamente saltou da prateleira para minhas mãos.
Foi um longo e divertido trajeto do aeroporto até a charmosa pousada que escolhi para me hospedar, o suficiente para me transportar para uma outra atmosfera. De pés descalços e mochila nas costas, a recepção do casal proprietário da pousada fez com que me sentisse ainda mais à vontade. Eu queria apenas apreciar aquele cheiro de mar e o calor do sol. Fui para a praia e encontrei uma espreguiçadeira para me aconchegar de frente para o mar; o local perfeito para começar minhas miniférias.
A leitura do livro, no entanto, durou pouco, só para provar mais uma vez o que todo viajante sozinho sabe: você sempre tem companhia além da sua, se quiser. Eu só não podia imaginar que as pessoas que conheci ali naquele momento seriam muito mais do que apenas companhias. Quando buscamos respostas, elas podem vir da maneira mais inesperada possível. Daquela vez, vieram por meio dessas duas mulheres que cruzaram meu caminho naquele destino.
Em questão de minutos, nós nos aproximamos e começamos uma interessante conexão que nos acompanhou por cinco dias de viagem e perdurou por muito mais. Esses também foram anjos para mim, mas que me salvaram de uma forma diferente. Elas me abriram portas para que eu pudesse, aos poucos, resgatar uma Kelly que há muito tempo estava desaparecida e me mostraram um novo lindo caminho de descobertas em minha vida.
Esses anjos me conduziram a uma experiência de autodesenvolvimento que trouxe a “morte” daquilo que eu não queria mais para minha vida. Algo morria em mim e era como se um grande renascimento acontecesse aqui dentro. A morte já tinha estado a milímetros de distância de mim por várias vezes; o que, então, esse episódio tinha de tão diferente dos outros? Talvez o momento no qual eu estava, o limite no qual me encontrava ou a prontidão para digerir as mensagens que chegavam.
Os episódios anteriores me trouxeram cicatrizes que, durante muito tempo, representaram grandes traumas. Ao olhar por outra perspectiva, hoje não vejo mais marcas, mas sim a vida me presenteando com oportunidades para parar e analisar o real valor que estava dando a ela.
Precisei me deparar com a morte mais de uma vez para conseguir entender o que é o viver. O que tinha de morrer não era o que estava fora, mas sim dentro de mim. Um sentimento de desespero pelo que não fiz e vazio pelo que não vivi. Eu mal imaginava que aquilo seria só o estopim para o que viria a acontecer meses depois. O que estava claro ali era que a minha vontade de mudar e de viver era maior ainda.
Uau
Lindo Keka, adorei como terminou. Me trouxe a reflexao do luto, sobre quando as perdas nossas são dificeis de serem "superadas"(o que não é errado, dores são individuais/pessoais) e o momento em que você encara a "morte" do que voce era de maneira organica e dessa vez te trás uma leveza e a transformação fluiu, a perda fez sentido. Achei lindo, me emocionei.